Eu desejo-te… e tu também não
Amor e sexo nem sempre andam ligados. Há cada vez mais casais que vivem com o sentimento, mas sem o desejo.
Oito anos e meio. É o tempo que passou desde que Luís se casou com a sua mulher pela igreja. Faz silêncio.
Esboça um sorriso nervoso. Não está habituado a abrir a porta da sua intimidade. Diz que tem dificuldade em expressar os sentimentos. Não é verdade. Basta-lhe uma imagem para traduzir o que lhe vai dentro. “Mesmo ao fim destes anos todos, quando saio do trabalho tenho uma enorme vontade de ir direto para casa. Porque sei que ela está lá à minha espera e eu tenho gosto em estar na sua companhia, é uma grande parceira. Ainda hoje dou por mim sentado no sofá espantado para ela, a admirar-lhe a beleza. Ela é linda!, linda! E eu amo-a…” A voz fica presa na garganta, sumida, ao chegar à ultima frase. Por timidez. Luís, lisboeta de 44 anos, afirma que é feliz. E di-lo de forma convincente. Conta que a maior parte dos prazeres que tem na vida são partilhados com a mulher: os filmes, os passeios de fim de semana, as viagens, as jantaradas com amigos. Quem os conhece de perto gaba-lhes a cumplicidade, a amizade, a boa disposição. Garantia do próprio. Parecem ser um casal realizado, de bem com a vida, como tantos outros. O que (quase) ninguém sabe é que Luís e a mulher não têm sexo há mais de três anos. Nada.
Zero. A cama serve apenas para dormir. Ela nunca mostrou grande apetência para o sexo e, ao longo dos anos, foi-se mostrando cada vez mais indisponível para o ato. Luís achou no início que era uma fase passageira. Por causa da educação tradicional, por pudores, vergonhas, ou por causa da toma dos comprimidos receitados para uma antiga depressão gerada por conflitos no trabalho. “Ainda hoje os toma. São uns rebuçados muito caros que ela não larga.” Luís acreditava que os tempos de ‘seca’ iam passar, que tudo ia melhorar. Afinal de contas amavam-se, estavam juntos de livre vontade, não havia brigas, nem animosidade no relacionamento, logo o sexo haveria de dar certo, mais tarde ou mais cedo. Estava errado, o problema agudizou–se. Ele tinha sempre vontade, todas as noites. Ela nunca, nada. “Costumava afastar-me, dizia: oh, não comeces. Às vezes sentia-me pior do que estar deitado ao lado de uma bota da tropa. E se me esticasse num certo sentido levava uma sapatada.” Não é com raiva, rancor ou ressentimento que o diz. Há resignação, humor e até um certo afeto nas suas palavras. Fala das características e particularidades de quem escolheu para ter ao lado. E com as quais se habituou a conviver. Nem sempre foi assim. “Nos primeiros anos, uma vez por mês havia uma noite mais sortuda para mim, ela deixava-se ir. Eu mais quente, ela morna, quase fria.
Entregava-se, mas sem beijos, nem abraços. Muito menos toques, isso deixava-a ainda mais tensa.
O sexo era aceite após muito esforço e insistência da minha parte. Para mim era satisfatório, mas ela sempre mostrou que vivia bem sem aquilo.”
SEM SEXO. Há casais em que nenhum dos elementos sente vontade de ter sexo e estão de bem com isso. De acordo com os especialistas, se nenhum dos elementos se queixa ou apresenta desconforto não há patologia ou problema a tratar.
Nunca tiveram uma conversa a fundo sobre a questão. Ambos evitam o tema. É incómodo e, na verdade, nenhum deles parece saber por onde começar para o resolver. “Isto anda uma baralhada enorme. É mais fácil não fazer nada se o resto corre tão bem. Mas um dia temos mesmo que ir a um terapeuta sexual. Talvez haja caminho para a nossa intimidade melhorar. Talvez…” Por ela está tudo bem como está. E ele afirma que entrou numa espécie de “hibernação sexual”. Certa vez, a parceira chegou a dizer-lhe, meio a sério, meio a brincar: “Tenho pena de ti, qualquer dia tens que ir lá fora, satisfazer-te com as meninas.” Luís não a levou a sério. “Dizem que os homens têm o órgão sexual ligado ao cérebro, mas não é verdade. Sou a prova disso. Continuo a gostar muito de sexo, mas gosto mais da minha mulher. Nunca a traí, nem considero fazê-lo ou manter relações extraconjugais.
A LÍBIDO TAMBÉM SE TREINA
Por respeito ao nosso casamento. E não vou bater com a porta por causa disto. Senão tê-lo-ia feito há muito. Vejo as coisas desta maneira, é como alguém gostar muito de marisco, mas ser alérgico.” Conta que, uma vez por outra, se masturba a pensar nela ou numa mulher atraente que conheceu.
Mas que isso está no campo das fantasias e que garante que a libido também se treina. “Antes desta relação namorei muito, tive muito sexo, era rebelde, não era de andar num poleiro só. Mudei muito, como podem ver.” Não se vitimiza. Faz o inverso.
“Sou um herói. E talvez seja. Para as coisas resultarem entre um casal o sexo não precisa de fazer parte da equação, tenho vindo a descobrir. Bom, claro que se houver sexo é melhor ainda. Não nego. Mas tenho-me agarrado a outros prazeres. Praticar esqui em Andorra é um deles.” A comparação pode parecer despropositada. Mas há quem não ache.
ELA QUER. Na última década, o número de casos de homens a referirem pouco desejo tem aumentado. As causas poderão estar ligadas ao stresse, ao trabalho, ao desemprego e à mudança de papéis de género
“Porque é que o desejo físico é tido como fundamental e a sexualidade o maior prazer da vida? Quem não a tem sofre de um problema patológico? Não sigo essa linha da sexologia que muitos colegas meus defendem. Desde que a pessoa esteja bem com a sua falta de desejo ou sexo, para mim não há problema a tratar. E para algumas pessoas o maior prazer da vida não é sexo, pode ser comer caldo verde, ameijoas à Bulhão Pato ou tomar um banho de água fria. E eu devo achar isso errado? Não.” Quem o afirma é Gabriela Moita, sexóloga e terapeuta familiar. Este é uma tema que lhe é particularmente querido, pela invisibilidade na sociedade, pelo tabu e estigma associado à ideia de casais que não têm sexo e por ser uma realidade expressiva que lhe entra pelo consultório quase diariamente.
AS RAZÕES DA FALTA DE DESEJO
Em Portugal não há um levantamento estatístico sobre o número de casais sem atividade sexual ou com incompatibilidades ao nível do desejo num determinado momento da relação. Situações em que um dos elementos deseja praticar sexo e o parceiro ou parceira pouco ou nada. As razões poderão ser várias: Uma depressão, um trauma, a rotina, o stresse, a falta de tempo para o erotismo ou para namorar, o cansaço, a gravidez, os filhos, a falta de diálogo entre o casal sobre o que excita e desgosta cada um na cama, a gradual perda de atração pelo corpo da pessoa amada ou mesmo o desentusiasmo pelo sexo em si. Sem nenhuma razão aparente, física ou psicológica. E o problema não é um exclusivo dos casais heterossexuais.
O OUTRO. Também há relações gay que se mantêm apesar do desejo terminar. Em certos casos a saída é o casal permitir que a relação seja aberta a outros parceiros sexuais.
Esta é uma realidade quase sempre vivida em segredo. Pode ser assim com os melhores amigos – mesmo os que aparentam ser o casal perfeito – com familiares, com os vizinhos da porta ao lado.
E pode bater à porta de qualquer um de nós. Porque o desejo sexual não é igual nem permanente ao longo da vida de um casal. Sofre alterações.
ELAS QUEIXAM-SE MAIS
Por vezes é necessária a ajuda de um terapeuta para a equilibrar a dinâmica do casal, reconhece Gabriela Moita. “Não tenho dúvidas de que há muitos mais casais nesta situação. Digo-o pela minha perceção clínica e social. É muito significativo o número de casais que me procuram, em que um deles tem falta de desejo e o outro vive insatisfeito. E não é um problema de pessoas velhas, feias ou doentes.
A maior parte das vezes quem me entra pelo consultório com estas questões de hipodesejo [falta de desejo] são casais jovens, entre os 30 e 40 anos, bonitos, bem sucedidos, informados, licenciados. Costumam ser as mulheres a queixar-se de não ter tanta vontade de sexo, mas começam a aparecer cada vez mais homens a assumirem o mesmo.”.
Sinal dos tempos. Gabriela explica que em todos os casos é feita uma avaliação clínica de cada um dos sujeitos, analisada a fisiologia, os mitos e falsas crenças, as causas possíveis, trabalhadas as questões de erotização do casal, mas nem sempre isto basta. E deixa claro que, quando há um descasamento no desejo, nenhuma das partes sairá inteiramente satisfeita. “Porque a pessoa que queria mais frequência não vai ter a que queria e a pessoa que estava descansada sem sexo, vai ter mais do que desejava. Cada uma tem que perder, ceder, colaborar.” A sexóloga refere que o estado inicial de paixão ou encantamento traz quase sempre desejo sexual num casal – que se pode ir perdendo com os anos e, nalguns casos, dar lugar ao desconforto ou à repulsa. “Mas se o amor continua, o que o casal tem que decidir é se prescinde do sexo. Ou se a pessoa que não tem desejo está disponível para satisfazer os desejos da outra, ainda que o seu corpo possa não estar lá totalmente. Através por exemplo da masturbação, ou servindo de objeto sexual erótico.”
A OUTRA. Há casos em que o casal a dado momento perde o desejo sexual um pelo outro, embora não por outras pessoas. A escolha de viverem relações abertas, de ficarem pela fantasia ou traírem o parceiro depende de cada um.
Gabriela chega a relatar uma frase que ouviu muitas vezes da boca de mulheres sem vontade de o fazer com os maridos. “Devia haver prostitutas que dessem workshops para aprendermos a ter lá o corpo sem prazer. Não consigo, mas gostava de aprender a fazer isso, para satisfazer o meu companheiro.” A sexóloga Marta Crawford acrescenta outro ponto que pode fazer prolongar ou agravar estas situações: “A dificuldade de diálogo ou de discurso íntimo entre o casal é a meu ver a grande questão.
Se uma das pessoas tiver questões sexuais a resolver e conseguir verbalizá-las ao companheiro talvez se arranjem soluções, compromissos satisfatórios.” A especialista dá como exemplo um caso recente que recebeu no consultório. Uma mulher queixava-se da atitude do marido na cama, que não a entusiasmava devidamente. “Tu não me agarras com força. És molezinho!” – dizia-lhe a mulher pedindo-lhe inclusive que a chamasse de “puta”. Marta seguiu este diálogo de um casal com atenção. Ele respondia: “Não sou capaz de te chamar puta porque sei que não és.” Ao que ela retorquiu: “Eu sei que não achas isso de mim, mas é uma palavra que me excita”. Ele recusa: “Isso vai contra as minhas convicções, não consigo chamar-te isso.” Marta identificou o que estava por detrás dessa vontade e arranjou uma solução. “Mais do que os nomes feios, ela queria uma atitude mais agressiva, passional, animal, por parte do companheiro no momento sexual. E tive que lhes traduzir isso.” Noutras vezes, o reacender do fogo no casal começa com a proibição do sexo. Não podem tocar nos genitais, nem nas mamas. E devem explorar o corpo um do outro dos pés à cabeça. “Digo-lhes que quando estão a receber carinhos devem pensar apenas em si próprios e quando estão a dar devem pensar apenas no parceiro ou na parceira. Começa assim a terapia do bem-estar. Porque quando uma relação não está bem perde-se essa sensação. A proibição pode criar vontade. E é interessante e importante ambos perceberem que um beijo ou uma carícia não significa que vão ao ‘castigo’, que não é a antecâmara para a penetração. O sexo é muito mais do que isso!”, sublinha Marta Crawford.
QUANDO MENOS SE FAZ MENOS SE DESEJA
A sexóloga Vânia Beliz, autora do livro “Ponto Quê”, vai ao encontro da mesma ideia: “Sexo pouco gratificante é um dos motivos que pode levar um casal a reduzir a sua frequência sexual. Se não temos prazer dificilmente se potencia o desejo. E quando menos se faz, menos vontade há de o fazer…” Gabriela Moita refere que as mulheres com falta de desejo apresentam um imaginário erótico quase vazio.
Quando na consulta lhes pergunta diretamente o que mais as excita, a resposta delas é quase sempre a mesma: “Nada.” “É assustador.” Então, são convidadas a ir para casa pensar no que é que alguma vez as excitou. Gabriela ajuda-as com alguma bibliografia erótica. Elas regressam com o TPC feito e alguns fracos exemplos: “Ah! Foi um filme amoroso que vi há muitos anos” – dizem. “As mulheres têm muito esta coisa de ligarem a excitação ao amor, às palavras amorosas. Com muito amor é possível. E, na verdade, o quotidiano não é assim. Os rapazes não funcionam dessa forma. Cresceram a brincar com imagens eróticas, têm um ficheiro erótico riquíssimo, desde cedo falam de rabos, mamas, pernas e outras partes do corpo. O que lhes favorece a vivência do desejo e da sexualidade. Para a maioria dos homens certos palavrões têm uma carga erótica, mas para várias mulheres não, chega a ser deserotizante.” Daniel Cardoso, investigador na área das ciências sociais, com especialidade nas questões de género e sexualidade, considera que é a própria sociedade muitas vezes a gerar estes problemas. “Por um lado há uma pressão muito grande para que sejamos pessoas muito sexuais e, ao mesmo tempo, há condicionantes do quotidiano que nos roubam a energia e a motivação. Veja-se o desemprego e a crise, por exemplo. A variação do desejo não significa necessariamente uma doença ou patologia.” Na sua opinião, há uma pressão social para a monogamia no amor que contribui para variados desequilíbrios conjugais. “Em determinado momento da vida de um casal, um dos elementos pode começar a desejar outras pessoas ou a ter vontade de outras práticas sexuais sem que isso represente o desaparecimento do amor romântico. No entanto, é muito difícil falar sobre isso com a parceira ou parceiro.” Daniel Cardoso quer com isto dizer que um dos elementos pode passar a desejar menos o cônjuge ou parceiro, o que não significa que tenha passado a amá-lo menos.
Pondo de parte as questões de patologia fisiológica, que podem alterar o desejo de um dos elementos do casal, Daniel defende que importa descolar o debate para as melhoria das condições de vida das pessoas. “Como é que pode esperar que exista desejo, quando as pessoas têm de trabalhar 12 horas por dia para conseguirem sobreviver? Não é realista!” O psiquiatra e sexólogo Júlio Machado Vaz completa-o. “O ritmo alucinante em que vivemos é uma contraindicação absoluta para o erotismo.” Desarruma a conversa com a ideia do “Don’t ask don’t tell”: “Há mulheres com pouco desejo que dizem que, desde que não saibam, não se importam que os maridos se satisfaçam por fora.” E sublinha conhecer casos de casais que não têm bom sexo, mas em que a relação é admirável. “A felicidade de um casal depende de muito mais variáveis do que a capacidade de atingir o orgasmo. Precisamos de discutir o livro, o filme, de ter uma boa conversa, isso faz parte dos predicados para um bom parceiro de vida. Há estudos que apontam para isso, casais que se autoclassificam de felizes, embora ambos, ou um deles tenha uma disfunção sexual.” Não há padrões.
Os caminhos para o bem-estar e prazer a dois são inúmeros e à medida de cada um.
Fonte: Texto publicado por Fernando Mendonça na edição do Expresso de 18 julho 2015
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