Videojogos: quando a vida dos filhos passa a estar centrada num ecrã
Vício é cada vez mais comum entre as crianças que passam a viver isoladas, o PÚBLICO acompanhou uma sessão com pais e filhos.
As crianças vão entrando e pedindo licença para ocupar um lugar nos poufs dispostos em frente às consolas. Timidamente. Quase é necessário que os terapeutas lhes peçam para começar a jogar. À porta, os pais espreitam. No entanto, não é preciso passar muito tempo para que estalem os primeiros sinais de conflito entre os meninos. Parar o jogo e dar lugar a uma outra criança parece ser uma missão difícil, mesmo num ambiente diferente do de casa. “É um dos sinais de adição aos videojogos”, alerta Pedro Rodrigues, psicólogo clínico numa experiência que junta pais e filhos numa sessão sobre os desafios que as novas tecnologias estão a trazer às famílias. Enquanto os filhos jogam, os pais são convidados para uma conversa de grupo. O relato dos problemas que têm em casa também começa de forma tímida. Mas rapidamente concluem que lidam com casos muito semelhantes. “A maior dificuldade é quando é para o tirar do jogo, mas eu até compreendo em parte porque gosto de jogar”, sintetiza Octávio Gonçalves, um dos pais. Alguns já partiram a consola, o computador ou o telemóvel nos momentos de revolta.
Além das explosões de raiva, o interesse quase exclusivo e obsessivo pelos jogos e pela Internet é outro sinal de alerta, a par com o aumento do tempo de jogo, os conflitos, a quebra do rendimento escolar e as mentiras sobre o tempo que se passa a jogar. A perda de outros interesses, a fuga às emoções e o insucesso em tentar reduzir o tempo de jogo são outros sinais. Quando quatro ou cinco destas características estão presentes, Pedro Rodrigues alerta que é urgente pedir ajuda. Aliás, este comportamento aditivo foi incluído em 2013 na última revisão do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais. “Os pais vêm procurar ajuda quando o problema já está no patamar do intolerável, quando existe violência física, verbal e quando as notas baixam, porque os pais são muito sensíveis às notas”.
“Quer ser youtuber”
Na sessão com os pais, alguns admitem que tentam lidar com o problema proibindo temporariamente os jogos. Helena Castro tem dois filhos. Diogo com 13 e António (nomes fictícios) com 10 anos. As tecnologias são um problema, sobretudo no mais velho. “Quer ser youtuber”, resume a mãe, que relata dificuldades em casa e na escola — com uma série de notas negativas e “brancas” nos testes. Diogo quase nunca se desliga. Mesmo na escola vai fazendo vídeos com os amigos e publicando na Internet. “Volta e meio tiro-lhe o telemóvel e dou-lhe um dos antigos, que só faz e recebe chamadas. Chama-lhe o Ipedra, em brincadeira com o nome do Ipad, e diz que sou uma ditadora, uma Hitler.”
Susana Saldanha conhece bem o cenário. É mãe de um outro youtuber, Francisco, de 10 anos, “que sempre foi extremamente regrado” até terem ido, há um ano, por razões profissionais, para o Rio de Janeiro. “É uma sociedade totalmente diferente e posso dizer que o meu filho era um pouco gozado por ser português. Nem telemóvel tinha e lá eles têm tudo e eu tive de lhe dar um para ele se sentir integrado”, explica. A oferta teve o efeito contrário: Francisco começou a isolar-se cada vez mais. Passou a estar sempre online ou a jogar. A relação de proximidade com a mãe deu lugar a conflitos. Mergulhava cada vez mais tempo nos jogos. Entrou em depressão, teve pela primeira vez uma crise de epilepsia que os médicos atribuíram à mudança radical de vida. Regressaram a Portugal. Mas com eles veio também “o vício dos videojogos e da Internet”. “O meu filho reconhece que está viciado e que tem dificuldade em parar e que acaba por usar os jogos e o YouTube como um refúgio para as emoções”, explica.
Proibir?
Pedro Rodrigues e João Faria são unânimes: proibir não deve ser o caminho. Até porque os jogos têm potencialidades. Na sala onde decorre a experiência há conflitos. Mas também há meninos que quase não comunicam e que a jogar vão falando e rindo com os parceiros. “Se eu retirar não vou dar a possibilidade das crianças aprenderem a auto-regularem-se. A tecnologia deve ser um elemento de ajuda nos ganhos de competência. Isso implica que pais e educadores estejam mais presentes”, defende Pedro Rodrigues. O psicólogo lembra que a adição aos videojogos atua no cérebro da mesma forma que “as drogas como a cocaína ou heroína”, pelo que é “essencial” atuar no comportamento em vez de só restringir.
Dicas que Susana Simões, outra das mães presentes na sessão, recebe como úteis, mas com dúvidas. “Os jogos violentos trazem algum benefício?”, questiona. Pedro Rodrigues defende que os pais devem ficar atentos às idades recomendadas. “Mas mesmo que eu tente evitar há os colegas da escola que vêem programas e jogam jogos violentos”, contrapõe Susana Simões. A receita está em conversar com os filhos sobre o mundo irreal dos jogos. Sobre a violência em concreto, reconhece que pode parecer estranho, mas sublinha que “pode servir como momento de libertação de energias sobretudo nos jovens com algumas perturbações e com dificuldade em aderir a atividades físicas”. Nas perturbações do desenvolvimento há quase sempre um défice na produção de dopamina, uma substância associada ao prazer e às recompensas que muitas vezes estes jovens não conseguem no mundo real.
O terapeuta lembra que a postura inicial dos pais neste dia de experiência foi ficar fora da sala das consolas, recomendando que tentem participar nas atividades — até para perceberem como funcionam os jogos. João Faria corrobora que é importante os pais envolverem-se, considerando que pode ser perigoso “tirar o chão” a estas crianças — ou seja, fazer um corte radical. Até porque, este comportamento de dependência, diz, é muitas vezes o espelho de outros assuntos mal resolvidos, nomeadamente a incapacidade que muitos jovens têm em serem aceites socialmente e em terem os resultados esperados a nível escolar. “Os pais estão ávidos de ter estratégias, mas tem de ser feito um trabalho prévio, têm de ter tempo para serem pais.”
Fonte: Romana Borja Santos, Jornal Público (27/12/2016)
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